TEXTOS CRÍTICOS
O DESENHO MODERNO NO BRASIL | Reynaldo Roels Jr. | 1993
O ALEGRE BRILHO DE WILSON PIRAN | Wilson Coutinho | 1982
O BRILHO DA ARTE NA SOCIEDADE DE CONSUMO | Frederico Morais | 1982
NO PRINCÍPIO ERA O VERBO | Walmir Ayala | 1982
BRILHOS DE VITRINA | Georges Racz | 1982
O FATO E O FEITO ARTE | Roberto pontual | 1977
MOSTRUÁRIO DE ARTE | Frederico Morais | 1977
PIRAN E A ANÁLISE IRÔNICA DA ARTE | Francisco Bittencourt | 1978
FALSO BRILHANTE | Marcus de Lontra Costa | 1984
EQUILÁTERO | André Seffrin | 1998
O CANTO DAS SEREIAS OU NEM TUDO QUE BRILHA É OURO: ESTRELAS | Fernando Cocchiarale | 2003
TEXTO "ESTRELAS" ou "NEM TUDO QUE BRILHA É OURO" | Wilson Piran | 2003
O DESENHO MODERNO NO BRASIL
Editora MAM RJ e SESI SP -1993
O ALEGRE BRILHO DE WILSON PIRAN
A exposição brilha. É a mostra de Wilson Piran, um jovem artista de 31 anos, na Gravura Brasileira. Piran reativa o clima da moda: o das alegres e descontraídas emoções. Nada muito intelectual. Nada que ative o pessimismo laborioso do espírito. É uma mostra alegre. Utilizando-se de purpurina e lantejoulas, ele faz mais de 30 palavras circularem o espaço da galeria. Numa das paredes, um trabalho chamado Constelação, onde os nomes de alguns dos principais artistas brasileiros brilham como estrelas. Nomes como Scliar, Cildo Meireles, Tunga, José Resende, Amílcar de Castro, Portinari e outros.
As estrelas sobem e é essa a brincadeira de Piran. Um artista que é profissionalmente um decorador de vitrinas. Mas o próprio Piran tem brilhado. Na exposição da Coleção Gilberto Chateaubriand, no Rio e em Lisboa, americanos, noruegueses, holandeses gostaram do seu trabalho. Ele pode, por exemplo, driblar o gosto do público mais intelectual, ensandecido por uma lógica primária do racionalismo. Mas, confessa:
- Eu me interesso em produzir uma arte que seja completamente necessitada e dependente de público, daí os brilhos despudoradamente populares que causam prazer sem temores e que, espero, sejam estimulantes num sentido didático de fazer ver que a arte é um bem espiritual.
Piran partiu, desde 1976, da utilização de etiquetas e rótulos para uma discussão sobre a própria arte, que o crítico Roberto Pontual chamou de «conceitual humorístico». Realizou, na Funarte, uma alegre exposição com uma série de potes coloridos e agora se abre totalmente para uma experiência mais emocional. É sempre complicado, no atual momento da arte e do seu sistema, etiquetar artistas com conceitos que fecham o sua obra. É uma tarefa crítica, um pouco aloprada, como se os críticos possuíssem mais poderes que a obra. Esse tutelamento autoritário deveria findar como os demais autoritarismos. Assim como o povo ensina as elites a serem democráticas, é o artista que ensina o crítico. O resto é artifício maroto para influenciar espaços, poderes e barganhas no setor da arte, que também tem a sua política clientelista. Piran joga com palavras como alegria, sonho, emoção, plenitude - muitas das quais estimulam a sensibilidade. São palavras feitas de madeira, envoltas em calculado brilho, efeitos da purpurina, o que faz o artista chamar o conjunto da sua obra de Nem Tudo Que Brilha É Ouro.
É uma exposição festiva e agravável de se ver, sem preconceitos críticos. E uma boa recomendação para este fim de semana, ainda tenso devido a um computador que não elege e não computa, quando todos sabem quem já está eleito e computado. Uma mostra que é um feliz distanciamento de carrancudas tramas cibernéticas.
Jornal do Brasil - 3 de dezembro de 1982
PIRAN: O BRILHO DA ARTE NA SOCIEDADE DE CONSUMO
Perdi minhas notas sobre a exposição de Wilson Piran, na Gravura Brasileira. Elas se encontram dentro de um livro que dei a uma amiga, que o levou para Washington, onde reside. Ou seja, sem o querer, Piran estendeu o brilho de sua exposição até os Estados Unidos.
E como sem minhas notas - ou os slides em caso de aula - eu não sou nada, fico meio desarmado para escrever sobre a exposição de Piran. Mas guardo nos meus olhos o brilho, não importa se fugaz, de sua exposição. De qualquer maneira, porém, eu me lembrei de um texto que escrevi sobre uma exposição de Lygia Pape no Museu de Arte Moderna, com o título intrigante de «Eat-me - a gula ou a luxúria», em que dissertei, até com certo brilho intelectual, sobre certas qualidades intrínsecas à obra de arte. No artigo eu citava São Tomás de Aquino, para quem «são necessárias três condições para a beleza: primeiro a integridade ou perfeição, pois o que é incompleto é feio por isso mesmo; depois, a devida proporção ou harmonia e, por último, a claridade, pois aquilo que chamamos belo tem cor brilhante». Outro sábio medieval, São Denis, o Cartuxo, diz que a sabedoria, a ciência e a arte são essências luminosas, iluminando o espírito com seu brilho. Na Idade Média, portanto, o prazer estético sempre foi expresso pelo «brilho luminoso». Brilho que é a manifestação da luz, que é Deus.
Em seu livro sobre a arquitetura gótica e o pensamento escolástico, Erwin Panofsky diz, comentando o obra de vários autores medievais, que o espírito humano, quando se abandona à harmonia e ao brilho, que são critérios da beleza terrestre, sente-se guiado para a causa transcedente dessa harmonia e desse brilho, que é Deus. Esse método condutor para o alto é a anagogia, ou seja, uma ascenção do mundo inferior ao mundo superior - o que pode ser feito também através das obras de arte. O emprego do dourado,(que, aliás, volta, com força total na arte atual, de Kounellis e Warhol, na Documenta de Cassel, a Mira Schendel, Kate Scherpemberg e Antonio Dias, entre nós), do prateado e de pedras preciosas no mosaico bizantino, nos ícones e mesmo na pintura, ou a freqüência de certos objetos, como o espelho, ou temas, como os sete pecados capitais, na arte do período situado entre a Idade Média e o Maneirismo, podem ser explicados, em parte, por essa estética tomista.
Citar um sábio e um santo como Tomás de Aquino ou um erudito como Panofsky a propósito seja daquela exposição de Lygia Pape ou da atual mostra de Piran, pode parecer uma impertinência de minha parte. E talvez o seja, efetivamente, mas afinal, uma das características da sociedade de consumo, ou de massa, é justamente a quebra de todas as hierarquias. É preciso brilhar, ainda que por um momento. E afinal, o brilho é o tema central da mostra de Piran, como da anterior, de Lygia Pape. Ou, se quisermos avançar mais, a mostra de Piran é uma reflexão sobre o brilho da arte, ou melhor, sobre como, através da arte, pode-se brilhar numa sociedade competitiva, na qual tudo vale, e todos têm seu momento de glória, todos podem ter seu nome brilhando no painel da fama, ser um must, uma marca ou griffe de sucesso, enfim, ser estrela na pequena constelação dos escolhidos.
EXPOSIÇÃO BRILHANTE
Na sociedade de consumo, arte e publicidade, por exemplo, travam um curioso diálogo. A arte funciona, para a publicidade, como uma espécie de laboratório de linguagem - o out-door populariza certas invenções do artista. Porém, à maneira de um feed back, a arte vai buscar, na publicidade, certas soluções que atualizam seu repertório. Encarando pragmaticamente aquele conceito anterior de anagogia, a publicidade como que transforma as mercadorias em objetos de sedução, isto é enxerta neles fluídos eróticos ou escapistas, que alienam os consumidores da realidade imediata, impondo-lhes a idéia do prazer - ou do brilho fácil. As mercadorias seriam apenas a via anagógica pela qual se ascende ou se alcança um status imposto artificialmente pela sociedade de consumo, na qual é preciso ter e não ser. Ora nessa sociedade de consumo, a própria arte é transformada em mercadoria, ou seja, acabam por prevalecer, nela os valores sobrejacentes, isto é, materiais, e não aqueles subjacentes, isto é, espirituais. Aí estão os leilões que não me deixam mentir. Importam os nomes e não as obras. É o que faz Piran: ele não mostra as obras dos artistas que selecionou para sua constelação da arte brasileira, ele mostra os nomes. Um artista da póp-art, Robert Watts já se especializara em criar, com néon, assinaturas de nomes famosos, de Rembrandt a Picasso.
Piran conhece o ditado popular que diz que nem tudo que é luz é ouro, ou melhor, ele sabe, que o caráter mesmo do brilho é a transitoriedade e fugacidade, e mais ainda na sociedade do desperdício e do descartável como a nossa. É assim que seu painel da fama funciona como no sistema pegue-pague dos supermercados, os nomes que o compõem podem entrar ou sair, conforme as leis da oferta e da procura, ou seja, as leis do mercado e do capitalismo, sem que o conjunto seja afetado. E na ausência do ouro de 24 quilates ou das pedras preciosas, muita purpurina, como nas alegorias do carnaval ou no décor dos shows de música. Importa o brilho. E deste modo, Piran atende, sobretudo no período natalino e comprista em que estamos, a gulodice visual de todos. Seus nomes recortados em madeira e cobertos de purpurina são, na verdade, múltiplos, que podem ser comprados e encomendados. Quem não tem obra original do artista, que fique apenas com a assinatura, seja ela Segall, Tarsila, Portinari,Lygia Clark ou Tunga. Ou então, sem pudor, encomende seu próprio nome. Basta pagar. O preço vai depender do número de sílabas.
O leitor poderá achar que estou sendo muito reducionista. Afinal comecei citando são Tomás de Aquino e resvalei para o pragmatismo mais frio e cruel. Talvez até pense que eu não gosto da exposição. Ledo engano. Acho uma exposição visualmente muito excitante e também inteligente. Afinal, Piran se propõe a discutir o funcionamento do circuito da arte por meios especificamente visuais, criando obras que são uma ironia sobre a própria arte. E mais, não só as obras isoladamente, mas a própria montagem da exposição, têm sutilezas que escapam num primeiro momento. Há uma certa lógica na escolha das cores em relação aos nomes ou certas nuanças na distribuição da purpurina. Isto é mais evidente, sobretudo, quando o nome do artista é substituído por conceitos ou por palavras que indicam emoções, sentimentos: do compacto dourado da fama, à duração prateada e fria da eternidade e assim por diante. Mas eu vou parar por aqui que meu espaço acabou. Os leitores não devem deixar de ver a exposição, ela é brilhante.
Jornal O Globo - 13 de dezembro de 1982 & Crônicas de Amor à Arte - Editora Revan - 1995
NO PRINCÍPIO ERA O VERBO
A notável coerência e permanente crescimento da obra de Wilson Piran situam-no em lugar de absoluto destaque no panorama plástico do Brasil de hoje. Aproximado talvez, pela perfurante poesia, das pesquisas de Waltércio Caldas. O clima dos dois é de sedução, havendo em Waltércio uma ponta gasosa de mistério, de alquimia e revelação. Piran não quer se afastar da área imediata do «fazer artístico» e seu questionamento, valorizando cada vez mais a área da sedução que recobre de purpurinas e de todo o falso ouro do instante, mais escitante do que a perenidade do verdadeiro ouro.
Ao construir uma obra com nomes de artistas consagrados da arte contemporânea brasileira, confere ao ouro máximo da memória crítica, a roupagem do ouro multicolorido do nosso tempo, que se consome no suor das discotecas e nos figurinos descartáveis. Vai mais além, e entra no terreno exclusivo da poética, ao garimpar palavras, num incessante aprendizado do sentido de viver, esparzindo estas sugestões aleatórias de um poema subjacente, cuja integridade só se consuma quando o espectador completa o sentido ou mergulha no fascínio. Ou mesmo ambas as coisas, se é um privilegiado.
Essa experiência de Wilson Piran, como os outros passos anteriores, é um processo aberto, tão diverso das ressequidas expulsões dos laboratórios construtivistas de pince-nez e polainas, que diluem as grandes raízes de uma experiência já velha de vinte anos. O que mais se vê na arte mais ousada deste país, diga-se de passagem, é a diluição. A diluição do que veio antes e do que está aí. Como na década de 10, quando a tabela de valores era a Escola de Paris, ainda hoje, os estertores da Documenta de Kassel repercutem nos pintores de calças curtas, da taba tupiniquim, e os teóricos estremecem de aflição, sem saber em que altar acenderão sua vela, ante os biquinhos ávidos das gralhas da «vanguarda».
Esta «vanguarda» que um dia mestre Drummond chamou de «vão-guarda», em um de seus poemas. Wilson Piran também é um pesquisador, mas permanentemente embebido de sua própria experiência, cujas raízes estão na História, e se cristalizam no puro presente. Faz uma arte puramente crítica, que implica na absorção da linguagem corrente e massificada, extraindo do falso brilho uma essência espiritual. A palavra assume um signo estrelado, a partir de um repertório visual eminentemente popular.
O artista dá-lhes uma roupagem atraente - prazer de colocar no corpo aquele brilho que embriaga, estígma de falso rei ou mendigo ataviado, andarilo da instantânea alegria - e subjacente à potência verbal, protagonista e significante, sobre o qual o artista, na manipulação da cor, projeta suas claves semânticas. Em Weissmann o brilho é metálico, em Leontina é lírico - para citar apenas dois.
Já os brilhos da palavra Sedução mostram-se astuciosos. Há os timbres ardentes, os transcendentes, os virginais, os sensuais. A luz vem da palavra, é a luz da falsa riqueza, da enganosa segurança. Sob esta capa de ilusão, a força, a concentração, a exatidão e surpresa da pura palavra. O artista recompõe no correr da experiência o seu vocabulário, e já pensa em frases. O público, ao participar, faz o levantamento de sua própria cartilha, e com a imaginação realiza a aderência do tonalismo adequado. Tudo com muito brilho, o luxo da propaganda, o deboche da moda, o gesto escancarado da dança, o sorriso escrachado, a estrela na pálpebra, a chuva constelar na espádua, o umbigo iluminado, a fúria, o som. E antes e depois de tudo, a palavra.
O poeta tangendo seu rebanho e impondo a imagem direta e carregada como um golpe de dados mallarmeano. Wilson Piran realiza com esta mostra a suprema façanha de fazer do processo artístico, alguma coisa acima da vanguarda e da retaguarda. Possivelmente um ato contemporâneo e coerente com a plataforma da força jovem, que cria a nova imagem do homem. Mas acima de tudo uma experiência pessoal, resolvida com rara felicidade, empenhada no garimpo de um bem espiritual, forçando instrumentos curtidos de transitoriedade. A eternidade no instante, tudo no espaço de uma unha, menos ainda, na minúscula pétala de brilho de uma nebulosa artificial. O sonho e o delírio suportando a gravidade genesíaca da denominação. No princípio, afinal, era o Verbo.
Jornal do Commercio - Rio de Janeiro 5 de dezembro de 1982
BRILHOS DE VITRINA
Wilson Piran é um jovem artista fluminense, de Nova Friburgo, desde cedo envolvido com a experimentação das novas linguagens plásticas. Atento especialmente ao dia-a-dia do consumo popular, ele encontra as suas raízes na pop-art.
Piran tem por ocupação paralela a decoração comercial. Talvez por isso suas incursões ao pop sejam manifestações vivas, transpassadas do sentido de realidade, em contraposição à pura e simples importação de modelos estrangeiros, que freqüentemente esteriliza tantas propostas de vanguarda.
Trabalhando há tempo com os conceitos de brilho e falso brilho - no sentido literal, pois usa lantejoulas e purpurina -, o artista evoluiu dos «rótulos» apresentados na Galeria Macunaíma da Funarte, em 1980, para a palavra livre desligada do suporte, um título a que imprime significado simbólico - porém revestido e modificado pelo multicolorido de purpurinas esfuziantes. É a embalagem que vende, atrai e transforma de maneira palpável e verdadeira o conteúdo e o sentido.
São justamente as palavras transfiguradas que formam a mostra da Gravura Brasileira, valorizadas sobremodo graças ao ambiente propício - o fundo uniforme de cinza-escuro não interfere nas obras e os pontos de luz dos spots acendem a purpurina, exarcebando as cores e brilhos.
Piran, em trabalho artesanal, cuidado, desenha as palavras e as recorta com serra tico-tico na madeira compensada. Em seguida, ele as reveste de brilho encantadoramente enganador.
Revista Visão - 6 de dezembro de 1982
O FATO E O FEITO ARTE
No pouco de substancioso que os museus e galerias cariocas já entregaram ao público nesses três primeiros meses do ano, sobrou ao menos algum espaço para o artista jovem, mesmo o estreante. (...)Agora, para ampliar essa presença do artista jovem, que chega a ser auspiciosa, Wilson Piran - nascido há 25 anos em Nova Friburgo e vivendo no Rio desde 1968 - realiza sua primeira individual, no Museu Nacional de Belas Artes.
Para apresentar-se no catálogo, ele não se valeu de texto assinado por crítico. Descreveu-se e, ao seu trabalho, com suas próprias palavras, de uma maneira que já fornece chaves para a compreensão da linguagem visual que nos está querendo transmitir. Alinhou, como em etiquetas, modos de ver e agir: «Desenho, pinto, penso, procuro, vejo, sinto, leio, ouço, toco, aproprio, cheiro, duvido, anseio, falo, participo, erro, acerto, prego, construo, esqueço, sorrio, critico, destruo, crio, refaço, sonho, aceito, copio, compro, vendo, amo, lembro, ouço, aprendo, decoro, opino, discuto, dou, deturpo, recebo, sofro, indago, insinuo, insisto, instigo, degusto, interrogo, desisto, interrompo, consumo, ironizo, colaboro, pretendo, repito, simplifico, emolduro, programo, misturo, vivo...» Rótulos que estabelecem correspondência funcional com os modos de Piran lançar-se ao ato de fazer arte, discutindo esse ato e o que dele resulta (a obra) no momento mesmo de pratica-lo. Coloca-se desde logo, portanto, como mais um dos muitos artistas que, no nosso século de metalinguagens, têm dado ao fazer artístico uma função auto-indagadora - isto é, a obra de arte lhe serve de pretexto para investigar, antes de mais nada, os mecanismos que a condicionam, que a tornam, mal ou bem, obra de arte.
Infelizmente, sem a exposição montada por Waltércio Caldas no Museu de Arte Moderna do Rio, em fins do ano passado, fica mais difícil pedir ao leitor/espectador uma comparação entre as atitudes e trabalhos desse artista e os de Piran. Mas a comparação se impõe, porque ambos, nas séries recentes, manipulam basicamente o mesmo problema: as variantes de indagação em torno das circunstâncias materiais e conceituais que constituem o «quadro» - essa área restrita, emoldurada de mil diferentes maneiras, onde as coisas do mundo concreto passam para a realidade da metáfora ou onde se tenta criar formas independentes das que já existem no exterior. Em Waltércio, correspondendo a um processo mental com base em estruturas simbólicas ao mesmo tempo agudas e densas (com a própria alquimia tendo ali papel formador importante), essa indagação se processa mais distante, mais fechada, sutil a ponto de muitos custarem a percebe-la, porque reduzidas a seus elementos mínimos - a finíssima agulha que entra inteira, sem dor ou marca, apenas taticamente irônica.
Em Piran, ao contrário, o tema «com o quadro eu investigo o quadro (e, por extensão a arte)» se apresenta absolutamente explícito, mais ainda porque o riso, a faca da ironia, lhe serve de arma principal. E, talvez, um dos raros elementos a prejudicar a eficácia de sua atual proposta seja exatamente essa mescla de obviedade e ingenuidade com que ele se lança no trato do tema - salvo, de qualquer forma, pela vontade de ser sério mesmo dentro do maior dos risos e brincadeiras, como a sua disciplina e precisão na feitura de cada quadro bem refletem. Na mostra de agora, por exemplo, a sala que o Museu lhe reservou recebe uma série de quadros idênticos nas dimensões e no tipo de moldura utilizada: é a primeira evidência de uma disposição de disciplina, de uma tática de controle fazendo contraponto com a ironia que se há de encontrar por diferentes cominhos na linguagem de Piran. Ele esquematiza, para o espectador, a leitura de seus trabalhos.
Mas, dentro dos trabalhos, se solta. No quadro mais à esquerda de quem entra na sala, um tromp l’oeil (figuração ou abstração?) custa a nos mostrar a face de alguém montada no contraste do preto com o branco; uma inscrição em letraset se acrescenta a ela: «Artista. SM e F. Pessoa que professa as belas artes; pessoa que revela sentimento artístico; artífice, operário; adj. Amante das artes; engenhoso; astucioso»; mais ao lado e embaixo, a inscrição apenas recomeça: «Artista. SM e F. Pessoa que professa.» Está feita a profissão de fé de Piran - e dela é que ele parte. Duas séries básicas de trabalho constituem o conjunto de sua mostra. Na primeira - a do quadriculamento - os quadrados que compõem cada quadro (quadrado também) servem, um a um, para que ele desenvolva variações em torno do tema quadro/arte. Observe-se este: os quadrados idênticos contêm reproduções de detalhes de quadros famosos. Ou este: novos quadrados mostram técnicas e macetes de desenho e pintura. Ou mais este: quadrados, novamente, reúnem materiais de todas as espécies - recortes de reproduções fotográficas, tecidos, lantejoulas, selos, envelopes, textos, impressos, placas de mostruários. Mais do que uma colagem, tudo isso é um mostruário do fazer arte e da coisa feita arte.
O uso tático do Kitsch, que se encontra na segunda série (a das rosas) e em trabalhos esparsos, é contrabalançado pelo recurso de simplificação conceitual que as suas acumulações de etiquetas impõem. Essas etiquetas são mais uma vez veículos da rotulação dos modos, materiais e resultantes do fazer artístico, que Piran insiste em investigar. Nuns, ele agrupa os «ismos» da arte contemporânea; outros, as técnicas de obtenção de possíveis obras de arte; e em outros, ainda os materiais existentes ou a descobrir para se chegar a isto. No conjunto de sua exposição, esses trabalhos me pareceram os mais interessantes, pela economia de meios, a indicação imediata de sentido e a capacidade de fundir, na medida exata, o riso da aparente brincadeira à seriedade da crítica profunda. Trabalhos que me fazem abrir um amplo crédito de confiança nesse artista certamente disposto a ir em frente, invadindo a arte apesar de seu temperamento no fundo retraído.
Jornal do Brasil - Rio de Janeiro 21 de março de 1977
MOSTRUÁRIO DE ARTE
São 29 trabalhos, todos medindo 60 x 60 cm. com a mesma moldura de madeira, cobertos por vidro, colocados lado a lado, bem juntos, formando uma frisa. Quem entra no salão nobre do Museu Nacional de Belas Artes, no segundo andar, tem logo uma visão de conjunto. E se situa. Ou melhor, percebe logo as intenções do artista e o tipo de «jogo» que ele quer jogar, entre irônico e brincalhão: «fazer um trabalho sobre o trabalho a fazer». Num certo sentido, portanto, o que ele discute é menos o conceito de arte, e mais a prática artística.
Visto isoladamente em alguma exposição coletiva, fora da própria série, os trabalhos certamente não mostrarão o caráter instigante da pesquisa atual de Wilson Piran. Provavelmente, o próprio artista foi tomado pela sua série e de uma atitude inicial algo desinteressada passa para outra, que será a de explorar, doravante, de forma atenta e profunda o filão descoberto.
Dentro da rigorosa paginação da mostra, o primeiro quadro a prender nossa atenção é justamente aquele que sai do esquadro. Visto na diagonal, contém no seu interior, na horizontalidade, a palavra equilíbrio. Poderia estar no mesmo alinhamento dos outros, a palavra equilíbrio apareceria, então, na diagonal. Ao lado, outro quadro deixa escapar pelas extremidades superior e inferior, um pano. A moldura é aqui questionada. Noutro, nada há propriamente que emoldurar senão o próprio vidro, em cujas extremidades aparecem ornamentos florais. De longe vemos a mosca pousada sobre o vidro da «tela» - uma superfície amarela, uniforme. De perto constamos que a mosca é um decalque sobre o tecido. Três quadros à frente vamos encontrar outro quadro que diz, em complicada tipografia: parte inseparável da exposição, não podendo ser vendido, criticado, etc. Uma pequena dica do artista para dizer que a mostra deve ser discutida em seu conjunto, um quadro referindo-se ao outro, numa troca de comentários. Por exemplo, há uma seqüência de sete quadros, cada um constituído por 49 áreas idênticas (sete vezes sete) que sugerem, à maneira de um mostruário, as diferentes possibilidades de texturas, cores, figuras, materiais (selos,jornais, rendas, etc.). Que poderiam ser permutadas se não estivessem coladas sobre o suporte. Os quadrados dentro dos quadros, e os quadros entre si. Aliás, toda a mostra se organiza como um mostruário, como um catálogo de materiais e possibilidades. Č o próprio artista que o diz quando carimba alguns de seus quadros (mostrando diferentes quadrados de cor) com a palavra mostruário.
E por aí vai Wilson Piran, discutindo questões miúdas, mas que definem um sistema, a burocracia das artes plásticas: etiquetas contendo os ismos e/ou rótulos dos movimentos contemporâneos, itens de um regulamento de Salão de Arte (categoria, título, técnica, dimensões, preços, etc.) ou mesmo noções de ensino de arte, arte decorativa, profissão do artista, etc. E ao colocar as cartas na mesa, isto é, os quadros nos painéis, de certa maneira o que Piran faz é desmistificar processos, comportamentos, atitudes, etc.
A rigor não há novidade na sua proposta. Nestes tempos de metalinguagem, muitos artistas e grupos já percorreram cominhos semelhantes, de Duchamp e Manzoni, ao grupo francês Suporte/Superfície (no seu trabalho de desestruturação do quadro). Mas novidade em arte é pouca, e cada vez menos. Na verdade, o que interessa é a maneira pessoal como cada um enfrenta esta discussão em torno da prática artística. Piran apenas dá os primeiros passos, e seu trabalho revela ainda timidez ou mesmo ainda um certo ar provinciano e caboclo. Mas já contém indicações suficiente para atrair nossa atenção e a do público.
Jornal O Globo - Rio de Janeiro 21 de março de 1977
PIRAN E A ANÁLISE IRÔNICA DA ARTE
Quando começou a pesquisar, para realizar os trabalhos com os quais realizou a primeira individual no Museu Nacional de Belas Artes do Rio, Wilson Piran, um fluminense de Nova Friburgo nascido em 1951, ainda não se dera conta de que o processo de busca se transformaria na própria razão de ser da sua obra. Na raiz da mudança havia um profundo descontentamento com o estado de coisas não só das artes plásticas no Brasil como de seu trabalho. Desenhista e pintor já com certa tarimba, mas insatisfeito com os resultados obtidos, resolveu fazer novas tentativas com os materiais mais diversos, procurando-os principalmente nas lojas populares (como as Brasileiras e Americanas) e nos bricabraques. As primeiras obras resultantes de sua experiência eram insólitas «assemblages» onde não havia nenhuma preocupação com o tradicional bom gosto, supostamente o elemento básico de toda obra de arte. Surgia assim mais um artista para ser incluído na categoria da arte de vanguarda, o que significa a exclusão do mercado e do circuito das galerias comerciais.
Juntando-se ao coro cada vez maior dos artistas experimentais que dizem não ser a organização, o rigor, o cartesianismo a resposta adequada à nossa cultura, Piran passa a ter responsabilidades que ultrapassam o enfoque tradicional da arte. Com um trabalho que se quer antes crítico e de atuação mais ética do que estética, sua tendência será a de aguçar as contradições que existem na arte oficial, na arte aceita e nos problemas formais propostos pelas «belas artes». Para Piran, a arte tradicional é feita com muita técnica, com muito apuro técnico. E para que? Pergunta ele: Isso não é cabível dentro de nossa formação cultural caótica. Por enquanto a discussão tem sido o quadro, a pintura, e Piran acredita que o que tem de ser analisado e posto em questão é a própria estrutura da arte. Além do mais, diz ele, a arte não é uma coisa tão séria como parece. Arte séria é pretensiosa. Como a vida, ela pode não passar de uma brincadeira.
A CARREIRA
Quando recebeu Isenção do Júri do Salão Nacional de Arte Moderna do ano passado, Wilson Piran já vinha sendo notado pela crítica mais atuante do Rio. Logo depois, em São Paulo, soube-se que foi cogitado para receber um dos prêmios da Bienal Nacional, o que afinal não se concretizou pelos mesmos motivos sempre misteriosos que acabaram desacreditando completamente o evento, enquanto entravam para a lista dos escolhidos para os polpudos prêmios alguns artistas sem nenhuma expressão ou sequer interesse. Piran, ao contrário, estava presente nessa Bienal Nacional com um conjunto de oito quadros que confirmava inequivocamente não só o surgimento de um talento inquieto e criativo, mas também uma cabeça pensante, um intelecto vivo (coisa não muito comum nas chamadas artes visuais), voltado para os problemas de uma realidade especifica. Mas se os jurados da Bienal resolveram não premiá-lo, outros reunidos recentemente em Goiânia para julgar os trabalhos concorrentes ao III Concurso Nacional de Artes Plásticas da Caixa Econômica do Estado de Goiás, deram a Piran um merecido prêmio de aquisição.
A controvérsia, o debate em arte são sempre salutares, e parece ser esse um dos alvos principais do trabalho que vem desenvolvendo Wilson Piran nesta mostra do Museu Nacional de Belas Artes.
Trata-se, sem dúvida, de um dos inícios de carreira mais promissores que eu, como crítico, tenho a oportunidade de presenciar, e talvez uma estréia que vai marcar o ano de 1977. Ainda que a crítica de arte nada tenha a ver com a profissão de pitonisa, acredito que um dos ingredientes mais importantes para a nossa abalada e, para alguns, messiânica profissão, é o «faro» para detectar onde estão a promessa e o talento verdadeiros. E o crítico autêntico poucas vezes se engana, embora permaneça sozinho em suas afirmativas só vindo a ser confirmado mais tarde. No caso específico de Wilson Piran, esse sexto sentido do crítico »funcionou» em mim quando tive a oportunidade de ver o que o jovem artista estava fazendo em meados do ano passado, depois de ter abandonado um trabalho essencialmente gráfico, que não dava a medida de seu talento.
Os primeiros trabalhos de Piran que me fizeram constatar a presença de uma personalidade inequivocamente forte e criativa fazem parte, justamente, da série com que ele concorreu ao salão de Arte Moderna, à Bienal, ao Concurso de Goiás e que agora ele volta a apresentar nesta primeira individual. São obras onde o artista já abandonou a pesquisa ingênua dos materiais para interrogar sobre o sentido e a natureza da obra de arte e dos próprios mecanismos da criação. Retirando talvez de uma memória de infância e de suas primeiras fixações de cor e forma os elementos com que confecciona cada trabalho, Piran, embora acrescentando sempre aos abjetos que produz o toque comovido que caracteriza todo o homem verdadeiramente sensível, elabora o tempo inteiro dentro de um terreno altamente crítico ao dissecar e analisar o material kitsch que manipula e que pode ser papel de embrulho para presente, purpurina, guardanapos de papel, celofane rendado, lantejoulas, cetins ou molduras rococós.
Tudo em seu trabalho é usado como elemento para uma análise crítica, servindo quase como depuração, catarse artística. O processo é «sujo», barroco, para nos alertar não contra, mas sobre as impurezas e os maneirismos que costumam entulhar os canais artísticos. É o próprio material com que se faz arte que é usado para denunciar as armadilhas criadas no caminho do artista... e do espectador. E, nesse processo de depuração em que embarcou e nos carrega, Piran usa também palavras para ser ainda mais eficaz. Se nos trabalhos feitos com etiquetas escritas há uma perda de sabor irônico, de possibilidades lúdicas e de imaginação kitsch que tudo aproveita, ganha o autor em disciplina mental e em capacidade de organizar os conceitos que o tornam verdadeiramente inteligível. E com isso dá mais um firme passo à frente em sua carreira.
Jornal Correio do Povo - Porto Alegre 4 de fevereiro de 1978
FALSO BRILHANTE
Purpurina. Pura púrpura. Diante de nós, salve a matéria que reluz. A cor, todas as cores, ruiva raiz, metal, pau, pedra, pó. Ela passeia em nosso olhar, evidência do falso, escândalo e comuflagem que se mostram pela orientação do movimento. Ver e rever, jamais a reminiscência do local, preciso, de contemplação. Nada é igual a nada. O trabalho incorpora a idéia da luz, do sol que se movimenta pela abóbada celeste e ilumina, a cada hora, cada objeto do quarto. Captar a imagem do momento, fugaz, e reproduzi-la na constância, na resistência, igual e diferente, dialeticamente brilhante. Brilho inevitável pela apologia do externo, da capa, da pele, arte da superfície, fascínio pelo que reveste, veste de reis, símbolo de alta dignidade, escândalo perdido e permissivo nas poucas horas do desfile carnavalesco, entre samba, suor e cerveja. Batuque de reis miseráveis, apelo bárbaro, ser o que se mostra, o que se brilha, símbolo do poder e da verdade. A cor se mistura, o artista manipula o artesão, a irônica situação da arte. Brilho.
Sob esse brilho, a matéria orgânica. O corte preciso interrompendo o veio, a veia, o circular natural da seiva e do sangue. Antes, o artista fazia-se obediente às regras ortodoxas do vocabulário, signos do som e da expressão, vinte e três elementos da língua portuguesa interpretando a garganta. Ler e ver. Piran planeja o palco de produção do pleno. Agora, sem a prisão das regras gramaticais, liberto do território linguagem escrita, o artista descobre o campo de atuação preciso do vocabulário visual. O gesto, portanto, surge como forma primeira, rico e inimitável na captação do instante. Ele penetra a jaula da arte, incorpora o movimento, molda e modula, convida o espectador a participar de seu jogo, criando, pelo acúmulo da forma, a sua definitiva figura, o seu espaço de ação. Elemento exótico e humorístico que trabalha, simultaneamente, com o sofisticado e o popular; salada geral, geléia real. Matéria-prima, matéria da arte, desenho rápido a captar e incorporar a autoridade inevitável da Obra. A ironia da inserção da arte na vida do homem contemporâneo. Forma.
Sob essa forma, a ideia exótica da arte. Num mundo mergulhado na alta tecnologia, disposto a estourar o laser pelas galáxias, guerra nas estrelas, computadores a organizar a vida racional do planeta matriz, o paradoxo, base da arte, instala-se como algo bizarro e bobo, feito uma herança que se entrega como um enigma. Ronald e Mondale debatem suas soluções iguais para problemas de metade do planeta. Indira morre cravada de balas, dessas que a gente (quem diria...) tenta vender para alguns miseráveis como nós.
Bala, bela, bula de quintal que o sistema financeiro internacional impõe aos subdesenvolvidos, condenando-os à eterna miserabilidade. A arte respira este ar, libera o sopro, o pó. Piran entope nossos olhos de ouro. Ouro falso. Ouro-arte. A visão clareia o acaso dos acasos, a vida humana sobre a terra: sobre essa situação inexplicável e piegas, de mergulhar na brincadeira, no sensual. Salve o gadget, pouca importância à eternidade; o efêmero como caminho, aberto e límpido, como um gesto, um corpo e sua inexorável decisão de interferir numa realidade por nós mesmos criada, apropriada e desenvolvida. Talvez assim, a arte não morra, nem de amores. Fada. Foda. Tesão.
«Não se trata de mostra-lo».
É preciso vê-lo. Mistura. Ponto.
Revista «MÓDULO» - Rio de Janeiro Edição nº 83 - novembro 1984
EQUILÁTERO
São três tragetórias distintas dentro de algumas das principais vertentes da arte contemporânea, abrigados sob o nome operacional de Equilátero. A vertente pop de Wilson Piran, que expõe pintura pela primeira vez;(...) Não há semelhança de natureza formal ou temática entre os artistas. Todavia, a contemporaneidade os irmana neste triângulo. (...)
Já Wilson Piran, aberto sempre à pesquisa, artista marcado pela multiplicidade, percorre agora caminhos novamente surpreendentes, e se integra à melhor família de nosso abstracionismo de extração lírica. Mundos de densa atmosfera, labaredas, nebulosas, oceanos, cor a serviço de uma sondagem da gênese dos elementos, dos seres e das coisas. Uma pintura que sonda o mistério. Pintura de sensações e ressonâncias, de travessia, de encantamento. Segundo Sergio Milliet, pintura é magia, e no caso destes três artistas ela deita raízes no coração.
André Seffrin - catálogo da exposição "Equilátero" na Casas de Cultura Laura Alvim - Rio de Janeiro - 1998
O CANTO DAS SEREIAS ou NEM TUDO QUE BRILHA É OURO: ESTRELAS.
Fernando Cocchiarale
«Quem quer que, por ignorância, vá ter às sereias, e o canto delas ouvir, nunca mais a mulher e os ternos filhinhos hão de saúda-lo contentes, por não mais voltar para casa. Enfeitiçado será pela voz das sereias maviosas.» (Homero. Odisséia, canto XII, 40)
Da aurora do mundo ocidental, este episódio homérico parece evocar a então perigosa confiança depositada pelo homem nos cinco sentidos. Eles nos enganariam pela impossibilidade que têm de distinguir ilusão e verdade. Somente a inteligência poderia fazê-lo com sucesso. Nossas ilusões, sobretudo aquelas tecidas pela representação mimética clássica, podem ser, por analogia, remetidas a esta imagem ancestral da Odisséia.
Advertido por Circe, Ulisses cuidou de proteger sua tripulação do poder destrutivo dos mágicos cânticos das sereias, vedando-lhes os ouvidos com cera. Mas, diferentemente de seus marinheiros, não se privou da experiência de escuta-las. Ao amarrar-se ao mastro do navio pôde ouvi-las e salvar-se. O triufo de Ulisses já manifestava a desconfiança que alguns séculos mais tarde tornar-se-ia explícita para a filosofia. Na República (livro X), Platão advertia-nos no mesmo sentido: o cidadão ideal deveria aprender a separar realidade e representação, perseguir o caminho da verdade, afastando-se da ilusão criada pela arte.
Na arte contemporânea o poder de sedução do ilusionismo mimético clássico retorna transmutado. Foi substituído pela lógica do espetáculo, cuja crítica é central na poética de Wilson Piran. De seu florescimento, há vinte e oito anos, até sua fase atual, a produção de Piran discute, segundo ele mesmo, «o fazer artístico e a própria arte». Pretende «produzir uma arte que seja completamente necessitada e dependente do público, daí surgiram os brilhos despudoradamente populares, que causam prazer sem temores».
As etiquetas que expunham os rótulos dos repertórios e das práticas da arte do período deram lugar, a partir dos anos 80, às palavras escritas em letras cursivas, caligraficamente escolares, recortadas em madeira e recobertas de purpurinas multicoloridas. Desde então, toda sua obra se desdobra na série "Nem tudo que brilha é ouro".
Os 22 trabalhos atuais reproduzem em purpurina obras-primas da história da arte brasileira e internacional, que são verdadeiras estrelas da arte de diversos períodos históricos, contados do Renascimento à arte Pop. O poder imaginário dos trabalhos originais, entretanto, perde seu brilho já que aqui estamos diante de recriações que deles retém apenas o fantasma da imagem, suscitando uma espécie de ilusão da ilusão. Há, portanto, aqui a criação de um impasse estratégico: a força desses trabalhos nasce precisamente da substituição do fetiche da obra única, desejado pelo público, pela ênfase na perenidade evocativa das imagens.
Migrados para novos suportes, padronizados num formato comum a todos os trabalhos, esses ícones recuperaram sua aura perdida numa operação semelhante ao canto das sereias. Seu brilho barato, popular, sedutor e de grande beleza, parece oposto à lógica espetacular das megaexposições de nossos dias. Parecem querer compensar a aridez poética de parte considerável da produção contemporânea, com recursos cenográficos diversionistas, concebidos para atrair o público. O terrível e fatal destino anunciado por Circe a Ulisses não mais ameaça o espectador e o circuito de arte contemporâneos. Ao emprestar a algumas imagens de estrelas da arte mundial um brilho exógeno, ao introduzir no próprio trabalho o espetáculo que normalmente o ambienta, Wilson Piran possibilita ao espectador confrontar-se com suas próprias expectativas, seus valores estéticos e compreender a natureza de um circuito no qual Nem tudo que brilha é ouro.
Fernando Cocchiarale - Maio de 2003
ESTRELAS ou "NEM TUDO QUE BRILHA É OURO"
"ESTRELAS" é o título da exposição de WILSON PIRAN realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, no período de 12 de junho a 27 de julho de 2003.Um conjunto de 22 quadros, realizados em purpurina multicolorida sobre aglomerado, medindo cada um 84 x 84 cm, expostos em uma diagramação ordenada, ocupando o espaço expositivo totalmente pintado de negro. Em cada quadro o artista reinterpreta ícones da história da arte, mas também inclui figuras do mundo POP e do UNIVERSO RELIGIOSO.
O exato instante em que uma obra de arte impacta o espectador, refulgindo descobrimento, surpresa, beleza e êxtase; a necessidade de recuperar a alegria e o lúdico; retirar da memória de infância as cores, o brilho, o encantamento, são as principais fontes geradoras desta série de trabalhos de WILSON PIRAN. Transformar materiais desprovidos de valor e nobreza, como a purpurina, em elemento expressivo, aliado à preocupação de entender o fenômeno artístico, tem sido a principal preocupação do artista:
«Desde 76 venho desenvolvendo um trabalho preocupado em discutir o fazer artístico e a própria arte. Com trabalhos realizados com etiquetas auto-adesivas, nos quais rotulava todo o universo artístico: nomes de artistas, críticos, escolas e técnicas fui compreendendo que mais importante que questionar a arte era tentar explicitá-la visualmente, já que a criação só tem sentido quando ela é um fator de comunicação com as pessoas. Eu me interesso em produzir uma arte que seja completamente necessitada e dependente do público, daí surgiram os brilhos despudoradamente populares, que causam prazer sem temores e, que espero, sejam estimulantes num sentido «didático», de fazer ver que "A ARTE É UM BEM ESPIRITUAL".
"NEM TUDO QUE BRILHA É OURO" é um título genérico que encontrei para emoldurar todas essas idéias, das etiquetas passei a materializar os mesmos nomes e palavras, em palavras recortadas em madeira e recobertas de purpurinas multicoloridas, embalagem transfiguradora que seduz de maneira poética, estimulante e contundente, num golpe de efeito arrebatador. O brilho exacerba as cores e a luz de forma esfuziante e faz pensar: O que é significante, verdadeiro, perene em arte? A essência luminosa da arte, ilumina o espírito, transcende a matéria. O uso tático do kitsch, não somente no emprego de material não convencional e efêmero, bem como na apropriação e cópia de obras consagradas, remete diretamente à discussão do bom ou mau gosto, além de outras questões pertinentes ao universo da arte, sua razão de ser, seu espaço e propriedade, o fetiche do objeto artístico, o esteticismo daí resultante. Refazer ou copiar é por si uma atitude kitsch que busca neutralizar a figuração e focar sobre o meio — «O meio é a mensagem». É a própria arte e o material com que se faz arte, numa atitude auto-reflexiva, que são usados para denunciar as armadilhas que surgem no processo criativo e na fluição e legibilidade do fenômeno artístico. O processo é «sujo», barroco, para alertar sobre os maneirismos e as impurezas que podem entulhar os canais artísticos. O barroco, como é sabido, é a arte do desperdício, do excesso e da dissipação sem limites. A orgia visual do barroco, que emprega todo tipo de recurso para iludir ou enganar, tem uma significação ideológica precisa no sentido de promover a fuga desesperada do vazio e a festa permanente, mais luminosa, rica, exuberante e brilhante que se puder criar, para evitar a todo custo o tédio, o simples e o corriqueiro. Na cultura contemporânea a questão da cópia é, e será cada vez mais presente, infiltrada e inevitável, já que os progressos técnicos permitem cópias tão rápidas e perfeitas de absolutamente tudo (até da vida...), que chegará ao ponto em que ninguém se importará com a autenticidade, a não ser os lesados pelo aspecto criminal da falsificação. Vivemos num universo de bugigangas baratas, reproduções e arremedos que aceitamos e consumimos sem problemas. Era esta a antevisão de Walter Benjamin ao pensar o declínio da aura da obra de arte e o dilema que é imposto pelo fascínio, que nos contamina, da falsificação e a antiga aspiração ao único, verdadeiro, exclusivo e autêntico.
"ESTRELAS" é a continuidade e desenvolvimento destas investigações. A canibalização de clássicos, desde Picasso, passando pelos artistas da Pop Art, até os contemporâneos é uma constante forma de reavaliação, estudo, desmistificação e homenagem. A saturação visual de imagens a que chegamos nos impele a dissecar a exaustão as imagens existentes deglutindo e digerindo, aprofundando e transformando, para devolver os questionamentos renovados por uma nova ótica, recuperando a essência da obra de arte, sua poesia e seu poder de comunicação. Assim o falso ouro entope os olhos, mais excitante que a perenidade do verdadeiro ouro e busca refletir sobre o brilho da arte e o brilho dos artistas na sociedade de consumo, que de tudo se apropria, explora à exaustão e rapidamente descarta. O universo Pop, o decor de shows de música, as alegorias de carnaval, os tapetes de areia das festas religiosas do interior - Volpi, Warhol, Tarsila, Mondrian, Picasso, Albers, Lichtenstein e Matisse, entre outros, são as principais fontes de inspiração deste trabalho. Antropofagia total de meios e modos, resultando daí um trabalho de caráter eminentemente popular que refulge de transitoriedade e fugacidade. Importa o brilho ou o que restar deste artifício nas mentes, nos olhos e nos corações!..."
Rio de Janeiro, abril de 2003